Como era o debate sobre a Inteligência Artificial na Educação antes do advento de IAs generativas, com o icônico ChatGPT?
Publicado originalmente em IAEdPraxis: Caminhos Inteligentes para a Educação, em 30 de maio de 2024.
Desde novembro de 2022, com o lançamento mundial do ChatGPT, a Inteligência Artificial se tornou um objeto de discussão por parte de todos aqueles envolvidos de alguma forma com a produção de conhecimento. Mas antes deste uso público e massivo das IAs generativas, qual era o debate sobre a IA na Educação?
De fato já havia uma discussão significativa sobre os potenciais impactos disruptivos do conjunto de tecnologias conhecidas como “inteligência artificial” (IA) em diversos setores da sociedade, com atenção especial para o campo educacional. Particularmente, pelo que me lembro, o tema me chamou a atenção com a alegação de que teríamos uma nova classe de pessoas na sociedade a partir do desemprego estrutural, os “inúteis”, segundo as palavras do historiador Yuval Harari, em 2018.
Nesta época, a tecnologia cada vez mais deixava de ser um elemento de filmes de ficção científica para se tornar uma realidade, causando impactos econômicos, sociais e políticos. E também já assumiam tarefas de alto nível cognitivo, como a tomada de decisões complexas e a criação de produtos culturais, pondo em cheque o trabalho realizado unicamente por seres humanas, envolvendo criatividade, sensibilidade, etc.
Diante do tom alarmista, incluindo as preocupações sobre o futuro do trabalho humano frente às capacidades crescentes dessas tecnologias – recordando, ainda num período pré IA generativa – comecei a me interessar pela IA aplicada à Educação (IAEd). Esta, “uma área de pesquisa multi e interdisciplinar, pois contempla o uso de tecnologias da IA em sistemas cujo objetivo é o ensino e a aprendizagem”, segundo a definição do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), no relatório técnico que identificava suas tendências no período de 2017 a 2030, publicado também em 2018.
Mas assim como hoje, o que se falava e se discutia implicava num “considerável mal-entendido a respeito do que a IA pode e não pode fazer, resultando em expectativas infladas e no risco de que os usuários possam atribuir”, conforme um sucinto guia publicado pela Educase em 2017 e que destacava aplicações como tutoria personalizada e sistemas adaptativos. E deste então já se citava os dilemas no que diz respeito à privacidade, transparência de uso, necessidade de regulação e de uso ético, incluindo a violação de propriedade intelectual para o treinamento dos modelos algorítmicos .
Aproveitando um período de licença-capacitação (e coincidindo com o momento de isolamento pandêmico), realizei então uma pesquisa buscando investigar como os meios de comunicação estavam pautando a discussão e direcionando a percepção pública da IAEd e seu impacto no campo educacional. Através de mais de 90 textos publicados em revistas e jornais, tanto no Brasil como no exterior, generalistas ou especializados, pude identificar algumas tendências.
A Inteligência Artificial irá substituir os seres humanos? E como essa nova tecnologia irá afetar o ensino superior e a dinâmica nas salas de aula? Semesp, 2018
Um exemplo do “gancho” de tom emocional frequentemente utilizado pelos meios de comunicação para capturar a atenção do leitor.
Num sentido de suas aplicações, a IAEd foi apontada como ferramenta de apoio à gestão escolar, auxiliando estudantes em suas trajetórias acadêmicas, incluindo a seleção e admissão universitária e o combate à evasão escolar. A IAEd também foi vista como auxílio para o desenvolvimento de material didático, avaliação e individualização e personalização do ensino por meio de sistemas adaptativos e de tutoria inteligente.
Outros usos mencionados incluíam o reconhecimento facial, o monitoramento de emoções, a promoção do engajamento estudantil, o suporte à meta-aprendizagem, a aprendizagem de idiomas e questões de interculturalidade e de inclusão educacional.
Especificamente em relação à docência, a IA emergiu como uma possível ferramenta de apoio aos professores, com potencial para liberar rotinas e tarefas administrativas, auxiliar na formação e avaliação docente, e até mesmo suprir a falta de professores em algumas situações, embora com ressalvas sobre a completa substituição dos profissionais.
E logo, pensando no sistema educacional mais amplo, a IAEd foi retratada como um recurso para embasar políticas educacionais, promover a integração curricular, reduzir custos e aumentar a eficiência e qualidade.
No entanto, também foram levantadas preocupações sobre a falibilidade dos sistemas de IA, a necessidade de pesquisa aplicada rigorosa, de validação dos modelos, da consideração de potenciais vieses. Questões de privacidade, ética e vigilância tecnológica foram levantadas, numa abordagem crítica.
Assim, o amplo leque de possibilidades e desafios relacionados à incorporação da IA na educação, desde então, abrangia aspectos pedagógicos, operacionais e sistêmicos, exigindo avaliação criteriosa de seus riscos e benefícios.
Deste breve rememoração da situação da IAEd, destaco dois pontos:
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As aplicações da Inteligência Artificial na Educação são vastas e, de certa forma, a IAGenerativa baseada em modelos de linguagem natural pode esconder o potencial de ação da IA mais “tradicional”, sistemas especialistas não acessíveis ao público e frequentemente desconhecidos deste. Se considerarmos o caráter “opaco” desta tecnologia, associada à plataformização promovida pelas edtechs, corremos o risco de ter a IA implementada sem um debate amplo e uma avaliação de seus efeitos.
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Como praticamente toda a história da tecnologia educacional, as IAs generativas não surgem de um vazio. Pelo contrário, possuem uma trajetória e uma descendência. Da mesma forma, os debates que este tipo de tecnologia, a exemplo da privacidade e do uso ético, possuem uma historicidade que não podemos ignorar.