Reflexões sobre o potencial de desumanização da Educação
Hoje vamos enfrentar aquela pergunta que deixa todo professor de cabelo em pé, quando surge o tema da Inteligência Artificial: a profisssão docente continuará a existir ou verremos a substituição de professores pela máquina?
Publicado originalmente em IAEdPraxis: Caminhos Inteligentes para a Educação, em 6 de junho de 2024.
A ascensão das Inteligências Artificiais (IAs) generativas tem desencadeado um intenso debate sobre o potencial de substituição de profissionais, principalmente em áreas que lidam com a informação e o conhecimento. Como não poderia deixar de ser, a Educação está incluída.
A noção de que as IAs possam ocupar o papel de professores tem sido reavivada, suscitando preocupações sobre os impactos dessa possibilidade para a profissão docente. Alarmismo a parte, o que podemos dizer sobre o tema?
Um projeto metafísico?
O desejo de substituir o humano por entidades artificiais não é algo recente. Não tenho isso elaborado ou sistematizado, mas poderia diria que é um projeto ideológico, profundamente enraizado em nossa cultura. Desde as primeiras obras de ficção científica até os avanços tecnológicos mais recentes reaparece, vista como fascinação ou com temor.
Uma de suas primeiras manifestações pode ser encontrada no Frankenstein de Mary Shelley, publicado em 1818. A criação de uma criatura artificial, com a ciência desafiando os limites da Natureza também suscitava questões de moralidade.
Décadas antes, em 1770, o chamado “Turco Mecânico” já tinha causado sensação na Europa. Uma máquina aparentemente capaz de jogar xadrez derrotando personagens como Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin depois foi revelado como engano. Mas o fascínio de criar autômatos capazes de imitar e até superar as capacidades humanas.
Essas narrativas e manifestações culturais refletem uma ideologia subjacente: a crença de que o humano pode ser superado pela sua própria criação. De certa forma, assim como o Frankenstein-criador foi superado pelo Frankenstein-criatura, é um projeto niilista. Porém, de forma estranha, esse projeto se manteve sedutor ao longo dos séculos.
Substituição de professores: um projeto paradigmático
A ideia de substituição do humano está enraizada numa visão mecanicista do mundo, que reduz a realidade a uma série de problemas e de processos que podem ser separados, analisados e resolvidos, um a um. Esta mesma visão cartesiana nos leva a pensar a substituição do humano como uma questão de eficácia e de eficiência.
Disponíveis 24 horas por dia, sem limitação de horários ou períodos de descanso, atendendo cada aluno de forma personalizada, respeitando suas necessidades e ritmos individuais de aprendizagem.
A ideia de ensino personalizado, frequentemente apresentada como uma das principais promessas das Inteligências Artificiais na Educação, é de fato, um projeto mais antigo do que se imagina. Como destaca Audrey Watters em seu levantamento da história da tecnologia educacional , ela remonta a décadas atrás, muito antes do surgimento das tecnologias digitais.
A “instrução programada” já era pensada na década de 1920 por teóricos como Sydney L. Pressey e B.F. Skinner. Esses psicólogos acreditavam que o processo de aprendizagem poderia ser mais eficiente se fosse dividido em pequenas etapas, com feedbacks imediatos, algo que poderia ser automatizado.
Como ressalta Watters, esse ideal permaneceu ao longo da história da tecnologia educacional, primeiramente através das “máquinas de ensinar”, dos sistemas de “instrução assistida por computador” (CAI, na sigla em inglês) da IBM e chegando às primeiras iterações da Inteligência Artificial.
E além disso, eficiência, escalabilidade, produtividade, livres das imperfeições humanas também significam redução de custos.
Um projeto econômico
Por trás do entusiasmo em torno da adoção das Inteligências Artificiais (IAs) existe um forte argumento econômico: a viabilidade financeira ancorada na substituição do trabalho humano.
Num mundo competitivo, empresas e instituições buscam constantemente maneiras de reduzir custos e aumentar a eficiência operacional, é fato. A implementação de soluções de IA é associada a estes objetivos. Ao automatizar tarefas anteriormente realizadas por seres humanos, as IAs prometem uma redução significativa nos gastos com salários e benefícios, representando uma economia substancial.
Neste exato momento, este é um tema de discussão acirrada no mundo da IA. Empresas como OpenAI, Anthropic e as mais tradicionais gigantes tecnológicas somente poderão continuar a desenvolver seus produtos caso tenham viabilidade econômica. E esta não depende das assinaturas individuais dos planos premium, mas do uso por parte de grandes empresas. Que por sua vez somente assumirão este custo caso aumentem sua eficiência e lucratividade. Nesse raciocínio, fica evidente que o trabalhador humano é o mais prejudicado.
No campo educacional, a perspectiva de substituir professores por sistemas de IA é particularmente sedutora do ponto de vista financeiro. Os custos associados à contratação e manutenção de um corpo docente qualificado – visto como gasto – são significativos.
Dessa forma, num cenário cada vez mais privatizado, plataformizado, competitivo, com limitações na oferta de mão de mão de obra, o temor de substituição dos professores é algo a ser levado em conta. Seriamente.
Afinal, haverá a substituição de professores?
O contraponto às raízes metafísicas, epistemológicas, culturais e econômicas da substituição do ser humano pela máquina é justamente a humanização, ligado a um conceito ou entendimento do que é Educação.
Ela se resume, de forma reducionista, a um processo mecânico de transmissão-absorção de conhecimentos? Ou envolve algo mais como são as habilidades habilidades sociais, emocionais e éticas, tão específicas da interação humana? Ou mesmo a criatividade, tão proferida como a competência essencial do século XXI?
Justamente, a interação humana é essencial para a construção de vínculos e relações significativas, tão necessárias para engajamento e motivação dos estudantes. As IAs, por mais avançadas que sejam, carecem da capacidade de estabelecer conexões genuínas. São incapazes de compreender as nuances das experiências humanas. Este é argumento utilizado por autores como Neil Selwyn e Joseph E. Aoun, mesmo antes do boom das IAs generativas.
Professores possuem um valor intrínseco no processo educativo, se consideramos a Educação como um projeto de desenvolvimento integral dos educandos. Educar é uma experiência humana, com suas nuances, emoções e complexidades. Somos modelos de conduta, condutores de empatia e facilitadores do crescimento pessoal.
Mais além da dimensão pedagógica, o impacto sobre a Educação enquanto instituição social não pode ser negligenciado. Desemprego estrutural, impacto econômico sobre comunidades e economias locais. Acentuação de desigualdades educacionais e perpetuação de ciclos de pobreza e marginalização colocam e questão a sustentabilidade da IA a longo prazo, mais além da economia de custos imediatos.
Concluindo, a substituição de professores por Inteligências Artificiais representa um risco significativo para a Educação enquanto formação humana. É uma luta para a qual precisamos estar preparados.
Perguntei lá na outra rede e deu um resultado positivo para os empregos humanos.