Tive um colega de pós-graduação que possuía um estilo de comunicação bastante peculiar: ele “escrevia como falava e falava como escrevia”. Durante as aulas, quando ele levantava a mão para contribuir com a discussão, já sabíamos o que estava por vir. Começava com um ponto relevante, mas rapidamente abria um “parênteses verbal”, para contextualizar. Então, abria mais um parênteses para explicar um conceito mencionado, e dentro deste, ainda outro para fazer uma conexão histórica. Era uma verdadeira matrioska de digressões que nos desafiava a acompanhar as camadas de desvios até que, eventualmente, ele fechasse todos os parênteses e retornasse ao ponto original.
Quando tive acesso ao projeto de tese do colega, durante a disciplina de seminário, entendi que sua expressão escrita era um fiel de sua expressão oral. Suas notas de rodapé não eram meras notas, consistieam ensaios paralelos que frequentemente ocupavam páginas inteiras, com a parte inferior da folha completamente tomada por texto em fonte minúscula.
O mais surpreendente: nessas gigantescas notas havia mais notas de rodapé! Ele usava símbolos como asteriscos e cruzinhas para criar um segundo nível de notas dentro das próprias notas. Era como se cada pensamento gerasse três ou quatro pensamentos tangenciais que ele não conseguia deixar de registrar. A expresão espanhola “irse pelas ramas” (deixar-se levar pelos galhos) caracteriza bem esse tipo de pensamento.

Era daí para pior…
Este caso anedótico, ilustra como as notas de rodapé podem se tornar um refúgio para quem tem dificuldade de distinguir entre o que é essencial e o que é acessório em um texto acadêmico.
Notas de rodapé: por quê, para quê?
O dilema é familiar para quem escreve trabalhos acadêmicos Você tem uma informação adicional, um comentário, uma referência ou uma explicação que parece importante, mas não se encaixa perfeitamente no fluxo do texto principal. A solução? Uma boa e velha nota de rodapé [^1].
Elas existem há muito tempo na comunicação acadêmica, mas curiosamente, seu uso raramente é abordado em manuais de metodologia científica ou normalização. Não há um capítulo dedicado a elas nas normas da ABNT. Os guias de estilo como APA, Chicago ou Vancouver mencionam aspectos técnicos da formatação, com algumas poucas orientações sobre quando e como utilizá-las.
Já um artigo publicado em revista científica, mas que se orienta mais a um capítulo de manual metológico, são apresentados três tipos de notas: referências, fatos e ideias. O primeiro tipo tem a função de permitir aos leitores refazer o caminho de pesquisa, como em qualquer outra referências. Já as notas com fatos proporcionam informação de contexto que não seja imediatamente familiar aos leitores. Finalmente, notas contendo ideias se orientam a análises relacoinadas ao contexto intelectual mais amplo, incluindo caminhos alternativos de pesquisa que não caibam no escopo do texto. Tal clareza, entretanto, é ofuscada por usos corriqueiros [^2].
O resultado é que este recurso de escrita acadêmica acaba sendo governado por uma mistura de conhecimento tácito, tradições disciplinares e, não raramente, preferências pessoais que beiram a idiossincrasia. Alguns orientadores as recomendam, outros as proíbem. Algumas áreas do conhecimento as consideram essenciais, outras as veem como distrações desnecessárias. Entre esses extremos, existe um espectro de práticas que variam não apenas entre disciplinas, mas entre subdisciplinas, publicações, e até mesmo entre diferentes tradições nacionais de pesquisa.
Na ausência de regras claras e universais, o que um pesquisador em formação deve fazer? Como navegar por esse terreno nebuloso onde preferências estilísticas se misturam com questões substantivas de comunicação científica?
O que dizem as normas acadêmicas?
Paradoxalmente, para algo tão presente na escrita acadêmica, as principais normas e manuais de estilo dedicam pouco espaço para orientar sobre o conteúdo e uso apropriado das notas de rodapé. O foco principal costuma ser em aspectos técnicos de formatação, deixando um vácuo de orientação substantiva.
ABNT: minimalismo normativo
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), através da norma NBR 10520 que trata de citações em documentos, menciona brevemente as notas de rodapé, dividindo-as em dois tipos:
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Notas explicativas: que servem para comentários, esclarecimentos ou explanações que não podem ser incluídos no texto.
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Notas de referência: utilizadas para indicar fontes consultadas ou remeter a outras partes da obra onde o assunto foi abordado.
A norma estabelece que as notas devem ser digitadas dentro das margens, separadas do texto por um espaço simples entrelinhas e filete de 5 cm, a partir da margem esquerda. Recomenda usar fonte menor que a do texto principal e numeração consecutiva para cada capítulo ou parte.
No entanto, sobre quando usar notas de rodapé, quão extensas elas podem ser, ou critérios para determinar o que merece ser destacado em uma nota, a ABNT é silenciosa, deixando essas decisões a critério do autor, do orientador ou das instituições.
APA: restrição máxima
Por sua vez, o Manual de Publicação da American Psychological Association (APA), amplamente adotado nas Ciências Sociais, tem uma posição notoriamente restritiva quanto às notas de rodapé. Recomenda minimizar seu uso, sugerindo que as informações importantes devem ser incorporadas ao texto principal, não relegadas às notas.
Quando inevitáveis, as notas no estilo APA devem ser curtas e focadas. O manual sugere que, se uma nota de rodapé tiver mais de um parágrafo, o conteúdo provavelmente merece estar no corpo do texto. Também é desencorajado o uso de notas para informações bibliográficas, preferindo o sistema autor-data no corpo do texto.
Estas recomendações refletem uma ênfase em comunicação direta e objetiva, característica das ciências comportamentais, nas quais claridade e precisão são valorizadas.
MLA: uma abordagem moderada
O Manual de Estilo da Modern Language Association (MLA), utilizado nas Humanidades ee especialmente nos estudos literários, adota uma posição intermediária: aceita notas de rodapé para material complementar que enriqueçam o argumento principal, mas cuja inclusão no texto o tornaria demasiado denso ou desviaria o foco.
O manual sugere os seguintes usoso:
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Informações adicionais ou explicações que complementem o texto.
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Comentários sobre fontes ou avaliações de literatura.
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Agradecimentos ou reconhecimentos que não se encaixam no prefácio.
Diferentemente da APA, o estilo MLA não desencoraja notas extensas, embora sugira que elas devam ter propósito claro e contribuir para o argumento geral.
Chicago: o paraíso das notas?
O Manual de Estilo Chicago, amplamente utilizado na história, filosofia e outras disciplinas humanísticas, é provavelmente o mais acolhedor ao uso de notas de rodapé. Em seu sistema de notas-biliografia, as notas de rodapé servem tanto para referências bibliográficas quanto para material substantivo suplementar. Assim, reconhece o valor das notas para prover informações tangenciais, discutir exceções, reconhecer fontes secundárias, ou fornecer traduções de textos citados em línguas estrangeiras.
Este é único dos principais manuais de estilo que dedica atenção considerável a como integrar material substantivo nas notas bibliográficas, embora reconheça que a distinção entre citação e comentário frequentemente se dissolve na prática acadêmica real.
O que as normas revelam?
Esta breve comparação entre as principais normas acadêmicas revela algo importante: qualquer prática acadêmica, incluindo as notas de rodapé não são neutras ou puramente técnicas, mas refletem valores epistemológicos de diferentes campos do conhecimento.
As Ciências Naturais tradicionalmente valorizam a objetividade, a replicabilidade e a economia de expressão e tendem a restringi-las a um mínimo necessário. Já campos como História e Filosofia, nos quais a contextualização, a nuance e o reconhecimento de complexidades são valores centrais, encontram nas notas um recurso retórico imporante.
Mais que seguir regras técnicas, o uso apropriado de notas de rodapé exige compreender a cultura de um campo científico. Dessa forma, um uso considerado aceitável em uma dissertação de História pode ser considerado excessivo e digressivo em um trabalho de Psicologia Experimental.
Recomendações
Diante da ausência de regras universais e da diversidade de tradições disciplinares, como decidir quando e como usar notas de rodapé em seus trabalhos acadêmicos? Aqui vão algumas recomendações práticas, iniciando com a posição de Turabian, expressa num aclamado manula de redação científica?:
Use notas de rodapé substantivas com parcimônia. Se você criar muitas delas, corre o risco de deixar suas páginas com aparência fragmentada e desconexa. De qualquer forma, tenha em mente que muitos leitores simplesmente ignoram notas de rodapé substantivas, seguindo o princípio de que informações que não foram consideradas importantes o suficiente para estar no texto principal também não são importantes o suficiente para serem lidas numa nota.
É uma ironia cruel: você se esforça para incluir aquela informação adicional que considera valiosa, mas pode estar criando exatamente o efeito contrário. A nota de rodapé deveria ser um mimo para o leitor particularmente interessado, não uma muleta para um texto mal estruturado. Quando abusamos delas, transformamos o que deveria ser um complemento elegante em poluição visual que compromete a fluidez da leitura.
Conheça a cultura do seu campo
Antes de mais nada, faça uma imersão nas convenções não escritas de sua área é necessária. Examine artigos recentes em revistas importantes da sua disciplina, observe teses e dissertações premiadas. Pergunte diretamente ao orientador e a professores sobre suas preferências. Como cada campo tem suas próprias expectativas, alinhar expectativas e práticas evita conflitos.
Teste o “fluxo de leitura”
Ao considerar se uma informação deve ir para uma nota de rodapé, faça a si mesmo esta pergunta: “Se eu remover esta informação, o fluxo principal do meu argumento será prejudicado?”. Se a resposta for “não”, trata-se de bom candidato para a nota de rodapé. Se a resposta for “sim”, mantenha no corpo do texto, mesmo que isso signifique um parágrafo mais longo.
Evite a redundância
Não use notas de rodapé apenas para repetir ou reformular o que já está no texto principal, ela deve adicionar algo novo: um esclarecimento, uma exceção, uma referência complementar, um contraexemplo que não merece discussão completa, mas tampouco pode ser ignorado.
Cuidado com a “síndrome da enciclopédia”
Um erro comum entre pesquisadores iniciantes é usar notas de rodapé para demonstrar erudição, incluindo informações tangencialmente relacionadas ao tema. Lembre-se: o objetivo do texto acadêmico é comunicar seu argumento, não exibir tudo que você sabe. Pergunte-se: “esta informação realmente contribui para a compreensão do meu ponto?”
Mantenha a proporcionalidade
Como regra geral, notas de rodapé não devem dominar visualmente a página. Se você regularmente tem mais conteúdo nas notas do que no texto principal, é hora de reconsiderar. Talvez parte desse material mereça ser incorporado ao corpo do texto ou movido para um apêndice.
Seja consistente na função das notas
Decida desde o início qual será a função primária das suas notas: serão apenas para referências bibliográficas, quando permitido? Para explicações técnicas? Para traduções de citações em língua estrangeira? Para comentários historiográficos? Misturar diferentes tipos de informação nas notas pode confundir o leitor.
Considere alternativas
Às vezes, o que inicialmente parece destinado a uma nota de rodapé pode ter um lugar melhor em:
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Um glossário (para definições de termos técnicos)
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Um apêndice (para discussões metodológicas detalhadas)
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Uma tabela ou figura (para dados complementares)
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Uma caixa de texto ou quadro (para exemplos ou casos ilustrativos)
Pense no seu leitor
Talvez a recomendação mais importante: considere sempre a experiência do leitor. Notas de rodapé impõem um custo cognitivo, interrompendo o fluxo de leitura e exigem um movimento de atenção. Pergunte-se: vale a pena para o leitor interromper a leitura neste ponto para obter esta informação adicional?”
Finalmente, as notas de fim
Como alternativa às notas de rodapé, existem as notas de fim (colocadas no final do capítulo ou do trabalho). Elas têm a vantagem de não interromper visualmente o texto, mas o empecílio de dificultar o acesso imediato à informação. Em geral, são preferíveis para referências bibliográficas e menos adequadas para comentários substantivos que o leitor pode querer consultar imediatamente.
Concluindo
Numa abstração das recomendações anteriores, possivelmente a melhor orientação seja usar notas de rodapé que o leitor agradecerá por existirem, não aquelas que ele se ressente por ser obrigado a ler.
Como tantos aspectos da escrita acadêmica, o uso eficaz de notas de rodapé é mais uma arte do que uma ciência, arte esta aperfeiçoada com a prática.
[^1]: Como esta, que está ao final do texto.
[^2] Num trabalho que somente poder ser considerado como irônico, as notas de rodapé são caracterizadas ao mesmo tempo como universalmente utilizadas, mas universalmente ignoradas como tema de pesquisa. Nas palavras do autor, “a nota de rodapé é usa ,da por todo acadêmico, mas analisado por ninguém”, uma “inatenção chocante”, uma subteorização, diante da qual ele se propõe iniciar uma “onda de estudos rodapeísticos” (em tradução livre). A partir de sua origem histórica, descreve o uso atual, incluindo agradecimentos profusos e dedicatórias a “pets”. O exemplo utilizado acima foi tirado deste artigo.