Marcelo Sabbatini

O advogado de Breaking Bad e a educação a distância: representação de um preconceito na ficção seriada

O advogado de Breaking Bad e a educação a distância: representação de um preconceito na ficção seriada

Aviso sobre “spoilers

Fica alertado o leitor: o texto a seguir contem informações que revelam detalhes e desdobramentos importantes, senão fundamentais, da série televisiva Better Call Saul. Dito de outra forma, temspoiler, sim! Tem muito spoiler. Diante desta declaração, eximo-me de culpa de qualquer sentimento de decepção ou sofrimento psicológico que possam advir da quebra de surpresa na narrativa. Leia consciente e por sua conta e risco.

Mesmo com as sensacionais inovações no campo das tecnologias de informação e comunicação nos anos recentes, mesmo com a justificativa de interiorização e da democratização do ensino, mesmo com o amadurecimento que a experiência proporciona, a simples menção à  “educação a distância” ainda é recebida com sobrancelhas erguidas e olhares de desconfiança.

Para verificar a dualidade na percepção desta modalidade de ensino, desenvolvi recentemente uma pesquisa cujo objetivo foi avaliar qual a imagem que a educação a distância, ou simplesmente EaD, tem entre nós. E como forma indireta, de identificar esta imagem, analisei os meios de comunicação ”“ jornais e revistas ”“ segundo a premissa de que estes ao mesmo tempo refletem e direcionam o que o público pensa sobre um determinado assunto (ou segundo a Teoria da Comunicação, o que se chama agendamento ouagenda setting).

Os resultados que obtive reafirmaram esta polaridade, com uma abordagem jornalística excessivamente complacente convivendo com uma visão bastante crítica quanto ao potencial da EaD. Em comum, a qualidade da formação proporcionada, uma percepção fortemente marcada por um preconceito de origem histórica, com o entendimento da EaD como educação de segunda categoria (você pode ler uma análise mais completa neste artigo).

Porém, nunca tinha parado para pensar que a educação a distância também pode ter representação numa outra instância da comunicação: a ficção e, mais especificamente, a ficção seriada.

Tal revelação ocorreu por puro e simples acaso: ao assistir uma aguarda série de televisão, lá estava ela, uma inesperada representação social da EaD. Em apenas duas cenas, uma boa parcela do debate a respeito desta modalidade educacional assumia forma palpável.

A série em questão é Better Call Saul, spin-off da aclamada Breaking Bad, produção original da Netflix.Como tal, ela volta no tempo para explorar como surgiu um dos personagens mais paradigmáticos deste universo ficcional: o tragicômico e carismático advogado Saul Goodman.

Resumidamente, o “doutor” Goodman (como ele seria chamado aqui no Brasil) não era apenas antiético, mas totalmente criminoso: em seu papel de consultor legal e quebra-galhos dos traficantes Walter White e Jesse Pinkman ele lavava dinheiro, agenciava capangas, mediava acordos entre barões da droga, entre outras ilegalidades mais.

Problemas com a lei? Melhor chamar o Saul!

Pois bem, o que a nova série nos trouxe foi justamente a questão: de onde haveria surgido um tipo tão pitoresco?

E para respondê-la, retornamos alguns anos antes do tempo presenciado em Breaking Bad, com um razoavelmente bem intencionado James “Jimmy” McGill, o nome real de Saul, buscando fracassada e atrapalhadamente alavancar sua carreira de advogado.

Não vou relatar tudo que acontece neste objetivo, mas depois de inúmeras tentativas, algumas já não muito éticas, de se firmar em sua profissão, Jimmy encontra uma causa justa. E ainda mais milionária, por suas dimensões e repercussão social.

Para enfrentá-la, ele se alia ao irmão Chuck, um dos melhores advogados do Novo México, sócio de um grande escritório, mas afastado devido a uma doença psicossomática. De fato, os irmãos precisarão repassar boa parte do trabalho para o escritório.

Tudo parece acertado e finalmente Jimmy “Sabonete”, malandro juvenil, escroque perito em aplicar golpes irá mostrar seu valor como profissional honesto. Mas o acordo não fecha, o escritório não deseja que seu antigo estagiário e criminoso reformado advogue na causa.

E então vem a revelação. Foi o próprio irmão que sabotou o arranjo. Por quê? Deixemos os personagens falarem por si próprios:

Chuck: Você não é um advogado de verdade. (murmurando)

Você não é um advogado de verdade! (com ênfase)

Universidade de Samoa Americana, pelo amor de Deus?! Curso online? Que piada. Eu dei duro para chegar onde estou. E você toma estes atalhos e de repente se acha que é igual a mim? Você não pode chegar com esse diplominha e receber todos os louros.

Jimmy: Eu pensei que você estava orgulhoso de mim.

De fato, esta revelação, presente no penúltimo episódio da primeira (e única, por enquanto) temporada deBetter Call Saul é o ápice da trama que vinha se desenvolvendo até então. Assim, no episódio anterior a este ficamos sabendo que Jimmy, um “tirador” de xerox no escritório de seu irmão, havia estudado, formado-se e passado o exame da Ordem dos Advogados, tudo isso sem que seu irmão soubesse. Ao mostrar a carta de aprovação, ele menciona a tal Universidade da Samoa Americana:

Jimmy: Não é uma Georgetown da vida.

Chuck: Ah, curso por correspondência.

Jimmy: Eu não podia parar de trabalhar. Noites, fins de semana, você sabe. Eles agora chamam de educação a distância. É reconhecido. E então o Exame da Ordem foi fogo, pelo menos para mim. Fui reprovado nas duas primeiras vezes, mas eu acho que é como perder a virgindade: a terceira vez é a que conta.

Eis a questão: Saul Goodman se formou a distância. Fez um “curso por correspondência”, como na expressão de sentido negativo amplamente utilizada no Brasil. Portanto, não tem competência. Não é advogado de “verdade”. Ele é “menos”.

Ou não? Como se viu depois, apesar de atuar na indústria das indenizações, tendo como clientes os tipos mais pitorescos do lumpemproletariado e de manter sua atividade paralela, assessorando o tráfico de drogas, Saul conhece bem as artimanhas da lei. Na medida do possível, ele resolve todos desafios legais com os quais seus clientes fora da lei se deparam.

O que nos traz a interessantes reflexões sobre a educação a distância.

O público-alvo da EaD

Dentro da própria Universidade Federal de Pernambuco, ouvi o questionamento: por que existem polos de educação a distância na cidade do Recife, se o curso presencial está fisicamente acessível e próximo?

Aqui, a terminologia ainda em voga acaba prejudicando a percepção: a separação entre aluno e professor, utilizada como critério de definição desta modalidade, não ocorre somente no espaço, mas também no tempo (e na maioria das vezes em ambos).

Assim, a EaD vem historicamente, nos mais diversos países, atendendo a um público que por um motivo ou outro não possui o tempo, no sentido de comparecer à s aulas em determinados dias da semana ou em determinados horários: donas de casa seriam um exemplo, mas pessoas que trabalham, nas mais variadas atividades, compõe uma fatia importante destes educandos.

Por outro lado, um dos elementos positivos da representação social da EaD foi justamente o maior empenho daqueles que estudam a distância, dotados de características como autonomia, responsabilidade, dedicação, etc. Não é qualquer pessoa que possui este perfil, o que ajuda a explicar as altas taxas de evasão na EaD; contudo, aqueles que chegam até o final de um curso seriam graduandos altamente capazes e competitivos no mercado de trabalho.

O caso de Jimmy-Saul exemplifica estes desafios e dilemas: a necessidade de trabalhar, com a impossibilidade de dedicar-se em tempo integral aos estudos compensada por sua persistência e autossuficiência, tão características deste personagem.

Mas também podemos indagar: o acesso de pessoas que estariam nas camadas inferiores das hierarquias sociais e organizacionais não causam incômodos, ao aceder aos títulos do ensino superior e aos poderes que estes concedem? No episódio anterior à  revelação do preconceito do irmão, isto é o que acontece, aparentemente. O sócio do escritório conversa a sós com o recém-formado advogado e, pelo contexto, compreendemos que ele não terá uma oportunidade de mudar da sala da xerox para os escritórios dos advogados.

Modalidade versus projetos e instituições

Quem é responsável pela qualidade (ou pela falta dela) na EaD? A instituição que a utiliza? Ou é algo intrínseco à  modalidade, fruto da separação entre professor e aluno? Ainda mais, seria impossível separar uma da outra? No discurso do irmão, as percepções se mesclam. Se a distância da Samoa Americana dos grandes centros universitários norte-americanos nos remete a algo um tanto tosco, a metodologia pedagógica também é vista como um “atalho” pelo advogado formado nas universidades de elite.

De certa forma, existe uma base para esta visão negativa, no sentido de que algum as instituições universitárias fizeram um intenso uso da EaD para se projetarem no mercado, à s custas da qualidade. Nos Estados Unidos, o exemplo é a University of Phoenix, uma instituição com um grande número de alunos, frequentemente criticada por ser uma “fábrica de diplomas”.

Já um contra-argumento bastante comum quando se discute a falta de qualidade nos cursos de educação a distância é a qualidade da educação presencial. Esta não se garante por si só, mas depende essencialmente do projeto pedagógico e da concepção de educação que uma determinada instituição assuma.

Mas ao mesmo tempo, temos exemplos de iniciativas altamente bem sucedidas, enquanto à  percepção de valor da formação proporcionada, tanto na esfera pública, como na privada. Reconhecimento do mercado, resultados do ENADE e de outras avaliações do MEC demonstram que a qualidade na educação a distância é plenamente possível.

O que temos como premissa teórica é o princípio da equivalência, ou seja, mesmo sendo diferentes na metodologia (em seus caminhos, recuperando a etimologia deste termo), os objetivos alcançados de um curso a distância ou presencial devem ser os mesmos. Como analogia, um triângulo e um quadrado podem ter a mesma área, embora sejam figuras geométricas distintas. E de fato, a legislação brasileira proíbe que o diploma faça referência à  modalidade empregada.

Para os detalhistas, já na série anterior era possível saber a formação de Saul, pois seu diploma é visível em seu escritório. Esse é o “diplominha” que causou a ruptura de dois irmãos.

Portanto, não existe uma resposta conclusiva, embora o pensamento lógico se incline para a qualidade institucional (boas faculdades e universidades fazem bons cursos, independentemente da modalidade). Neste sentido, necessitamos de mais pesquisas, inclusive metapesquisas, que explorem a relação entre estas variáveis, a partir dos resultados de avaliações sistêmicas.

Nota: a Universidade da Samoa Americana é fictícia: em sua página no Facebook aparece a foto de Saul Goodman como aluno emérito. Porém, nesta ilha existe uma faculdade comunitária, aAmerican Samoa Community College.

O papel da formação prática

Finalmente, a situação de conflito entre possuir um diploma conquistado através da educação a distância e ser rejeitado pelo mercado de trabalho nos remete também ao lugar da prática na formação universitária.

Neste ponto cabe destacar que não existem cursos a distância “puros”, isto é, sempre existem situações que exigem a presencialidade. Não somente em relação à s avaliações, uma exigência legal, mas também na aquisição de habilidades e competências que exigem um contato mais próximo entre professor e aluno. Este fato é o que permite, por exemplo, que tenhamos cursos que demandam práticas em laboratório, como por exemplo, Química, Física e Biologia.

Além disso, a modalidade da EaD fica submetida à s mesmas normas que os cursos presenciais. Com exemplo mais próximo de minha experiência, os cursos de formação de professores, Licenciaturas e Pedagogia, exigem o estágio obrigatório, com a atuação em sala de aula do futuro educador.

Já no Direito, o estágio obrigatório foi uma das principais propostas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para a formulação de um “novo marco regulatório do ensino jurídico”; até então, tem sido um critério de cada instituição.

No caso da Universidade da Samoa Americana, podemos inferir que Saul nunca fez estágio (devido ao tempo que isto exigiria e que não passaria desapercebido pelo irmão). Esta poderia ser considerada uma falha na formação universitária de nosso anti-herói, ou seja, ponto a favor da resistência contra a EaD.

Camisetas de universidade nunca saem de moda. Mas com certeza você irá fazer sucesso com esta camiseta que Saul poderia ter utilizado.

Contudo, mesmo em cursos presenciais altamente reconhecidos, temos indícios de que o estágio não é bem realizado, com a falta de acompanhamento dos professores, somada a uma variedade de dificuldades logísticas. Percebo aqui um duplo padrão: fecham-se os olhos para as deficiências da educação tradicional, ao mesmo tempo que se exige em dobro, talvez até mais múltiplos, da educação a distância.

E como último pensamento, qualquer tipo de formação não se limita ao aspecto formal e institucional. A vivência e a “sabedoria das ruas” de Saul o prepararam plenamente para o exercício da advocacia criminalística. Se num caso (altamente hipotético) eu precisasse lavar dinheiro ou desaparecer completamente da face da Terra, certamente recorreria a ele.

É como disse seu irmão: Jimmy “Sabonete” com um “diploma de advogado é como um macaco como uma metralhadora”. E quem assistiu a Breaking Bad sabe como essa frase se revelou profética!

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