Marcelo Sabbatini

Sense8, interculturalidade e educação

sense8 e educação

sense8 A premissa é interessante: como fruto de uma evolução natural, certos indivíduos chamados sensates (sensitivos) teriam capacidades de percepção extraordinárias, sendo capazes de sentir o mesmo que outras pessoas, numa espécie de empatia superpoderosa. Por algum motivo não muito bem explicado, os sensates se agrupariam em núcleos de oito pessoas, formando uma espécie de família.

E daí o título desta série, um jogo de palavras em inglês que reúne este algarismo e a sonoridade da palavra que representa os “sensíveis”: Sense8. Esta série de ficção científica, produção original da Netflix rapidamente alcançou status de cult, fazendo um grande sucesso e especialmente no Brasil. Exatamente hoje, o seriado retorna em sua segunda temporada, num episódio especial de Natal, com uma enorme expectativa por parte de seus fãs.

Mas para quem ainda não viu nem a primeira temporada, uma breve sinopse, com alguns spoilers. O seriado começa no momento em que uma sensate com maiores poderes “dá a luz” a um novo grupo destas pessoas escolhidas, que a partir de então, começam a se conectar sensorialmente uns com os outros. Logicamente, para eles são acontecimentos fora do comum, inexplicáveis.

É neste ponto que entra em cena uma das características mais marcantes dos Wachowski, criadores da série e de outro cult da ficção científica, a trilogia Matrix: a diversidade cultural. Para quem se recorda, a cidade de Zion (Sião), lar dos humanos resistentes à  tecnologia escravizadora da inteligência artificial fora de controle era uma verdadeira salada étnica. Os sensates seguem uma linha similar, ainda que não miscigenada: eles estão em quatro continentes (faltou a Oceania!), entre jovens homens e mulheres de diferentes etnias, religiões e classes socioeconômicas.

Sense8: tudo junto e misturado

Em comum, porém, todos sofrem alguma forma de discriminação. O descendente de irlandês, “hereditariamente” policial dos subúrbios de Chicago. A DJ islandesa, com sua sensibilidade artística e sua predileção por drogas ilegais, incapaz de se adaptar à  sociedade. A sul-coreana herdeira de uma mega empresa, relegada em favor do irmão, apesar de ser mais competente. A indiana, também afetada pela cultura patriarcal, além de sua religiosidade em conflito com a modernização de sua sociedade. O alemão, fora da lei e marginal por tradição familiar. O ator mexicano, enclausurado no armário de sua homossexualidade. O queniano, negro, pobre, “lascado” e que mora muito, muito, longe. E a hacker transgênero lésbica, então nem se fala!

Diferentes formas de agir, de pensar e de sentir, seguindo a formulação clássica do fato social. E radicalmente diferentes, como podemos intuir, a partir da diversidade destes personagens.

Talvez o trailer da série ajude a explicar:

Nos capítulos seguintes o que vemos, de forma um tanto repetitiva (basta calcular o número de combinações possíveis de pares a serem formados, quanto mais trios), são as interações entre estes personagens tão diversos. Eles passam não somente a se encontrarem “espiritualmente”, mas a compartilharem pensamentos e emoções. Ou mesmo a assumirem o corpo e as ações do outro.

No início, como é de se esperar, são situações de choque e conflito. Como no exemplo da indiana recatada que se encontra com o alemão, em pleno nu frontal, relaxando “de boa” numa das piscinas públicas de Berlim.

Por certo, o fator sexual é primordial. Temos pelo menos dois personagens GLBTT, a transgênero e o ator gay. Mas também temos a repressão sexual da indiana, em contraposição à  liberdade e ao estilo pegador do alemão, que anda pelo lado errado da lei. E a cena de sexo com sete pessoas em total comunhão é tão antológica que não pode ser descrita, veja no Youtube, buscando “Sense8 – Demons).

Já na abertura pressentimos que há algo, digamos diferente, nesta série. O fato de ambos irmãos -a gora irmãs, Lilly e Lana, Wachowski serem transgêneros não é coincidência. Já a visita dos atores ao Brasil, desfilando em carro alegórico durante a parada gay de São Paulo é ação de marketing e ideológica ao mesmo tempo.

Mas também, intuitivamente, os sensates passam a se proteger uns aos outros. Pois claro, algo que todos possuem em comum é o fato de estarem, de uma forma ou outra, encrencados. A carência de um é suprida pelo ponto forte do outro. O ator mexicano que nunca brigou na vida é salvo pelo alemão. Este, por sua vez, não sabe mentir, a alma da profissão de seu amigo empático.

Sob esta premissa fantástica, Sense8 lança uma proposta instigante: a empatia plena. Tal habilidade, subconjunto da chamada inteligência emocional, poderia ser definida como o exercício afetivo e cognitivo de buscar interagir percebendo a situação sendo vivida por outra pessoa. Então, o que mais empático que compartilhar a vida de outro?

Infelizmente, tal promessa não é plenamente cumprida, pelo menos na primeira temporada. A maioria dos encontros se limitam a superficialidades, inclusive com conversas quebra-gelo, com a comparação do tempo que está fazendo. E logo, o potencial de ação conjunta dos sensates, numa superequipe, dá lugar ao corre-corre e ao heroísmo um-contra-milhares tão típico do universo wachoskiano. Quem sabe o que veremos na segunda temporada, que estreia agora?

Mas enfim, meu objeto de pesquisa não é a ficção seriada e suas qualidades, mas a educação. E neste ponto, vejo que a premissa de Sense8 é altamente relevante para a teoria e para a prática do ensino e da aprendizagem.

Mas para falar disso, vou contar um pouco sobre a pesquisa de mestrado de Aline Rodrigues Malta, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática e Tecnológica da Universidade Federal de Pernambuco, já defendida e de como ela se tornou um projeto de pesquisa mais amplo.

Tudo começa com uma diretriz estabelecida pelo Governo Federal no ensino superior da Pedagogia e que lembra um pouco a habilidade dos sensates: o futuro professor deverá “demonstrar consciência da diversidade (grifo nosso), respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnicoracial, de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras”.

E daí, vem a pergunta: é possível ensinar esta habilidade, a de demonstrar consciência da diversidade? Como é que se alcança isto em sala de aula? Com um pouco de bom senso podemos intuir que não é copiando do quadro-negro, nem lendo livros. É preciso algum tipo de vivência, alguma experiência.

Nesse ponto entra, um segundo eixo temático da pesquisa: jogos digitais. Os games, segundo vários teóricos, são capazes de nos fazer aprender. E como representação que se desprende da realidade, permitem-nos experimentar coisas que não seriam possíveis no mundo físico real.

Juntando uma coisa com a outra, nossa ideia foi de utilizar um jogo digital de simulação, o Sims 4, para que os alunos de Pedagogia criassem e vivessem uma identidade diferente da sua própria, e que neste processo, refletisse sobre a diversidade. A dissertação de mestrado de Aline focou a questão do gênero feminino. Como é ser mulher? Se faz uma mulher? Este exercício foi feito por mulheres e homens, de diversas orientações sexuais.

O resultado? A intervenção com o jogo ajudou, sim, a fazê-los refletir sobre a identidade de gênero feminina. Mas como acredito e repito, a tecnologia em si, o jogo digital, não é suficiente para causar esta mudança; foram as discussões em grupo e as entrevistas antes e depois da aplicação do jogo que estimularão a tomada de consciência. Dito de forma direta, a tecnologia, ajuda, mas o papel do professor é fundamental.

Agora, também podemos questionar: não é necessário estar num mundo virtual para criar e atuar como uma identidade feminina. Os diversos “blocos das virgens”, Carnaval afora neste Brasil, evidenciam este fato. Eu mesmo, durante minha graduação na UNICAMP, participava da tradicional festa do contrário: homens vestidos de mulher, e vice-versa. Mas o que ocorre nestes casos é que construção da identidade feminina se faz de forma distorcida, segundo as lentes do estereótipo. O contexto é da festa, de diversão, inclusive mesmo de sátira. Questões de ordem operacional, inclusive de segurança, dificultam esta forma de vivenciar o outro.

(Parênteses: eis a vantagem de não pertencer a esta geração digital, com seus smartphones com câmaras e conectividade total; as fotos com eu vestido com as roupas hippies de minha mãe, se é que elas existem, dificilmente irão “cair na net”).

Mas voltando à  diretriz do ensino superior, a mesma ideia pode ser aplicada as outras “diversidades”: como é ser um negro, um oriental, um índio? Um cadeirante? Um idoso? Um menino de rua? Um transgênero?

Ser um sensate resolveria esta questão; enquanto isso, experimentemos com os jogos digitais e outros tipos de vivência.

Para saber mais

SABBATINI, M.; MALTA, A. R. Interculturalidade, educação e jogos digitais: potencialidades do princípio da identidade de Gee. In: II Encontro Humanístico Multidisciplinar / I Congresso Latino-Americano de Estudos Humanísticos Multidisciplinares, 10 a 12 de novembro de 2016, Jaguarão.

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