Marcelo Sabbatini

A Universidade Aberta mais fechada do mundo?

Em tempos de streamings, nuvens, plataformas e aplicativos, qual seria a expectativa ao comprar um livro digital? Acesso imediato, uso sincronizado em diversos dispositivos (leitor eletrônico, celular e computador, etc.), possibilidade de anotar e exportar citações…o mínimo. Afinal, já temos essa experiência num mundo cada vez mais convenientemente digital.

Contudo, qual não foi minha surpresa ao comprar o ebook de um estimado colega pesquisador, recentemente lançado pela editora da Universidade Aberta da Catalunha (UOC)? Resumidamente, encontrei o oposto do descrito acima.

Além de precisar me digladiar com as páginas de ajuda, de baixar um software obscuro e obsoleto, ao final me dei conta de que somente poderia abrir o livro no computador. Ainda mais, sem a possibilidade de qualquer interação com o texto. Até um livro físico seria mais útil, em comparação.

Mas tal contradição é ainda maior se pararmos para pensar no que a UOC representa no cenário da educação e da comunicação mediadas pela tecnologia digital.

A promessa de uma universidade aberta

Criada em meados da década de 1990, a UOC surgiu não apenas como uma resposta às necessidades de educação flexível, mas também imbuída de um forte componente identitário catalão, buscando projetar a cultura e a língua da Catalunha no emergente espaço digital.

Seu modelo inicial se baseou na experiência da pioneira espanhola em Educação a Distância, a UNED (Universidad Nacional de Educación a Distancia). Contudo, a UOC procurou adaptar seu discurso e prática, posicionando-se como um símbolo de inovação educacional.

No início do novo século, aparecia como uma instituição de vanguarda tecnológica, destacando-se principalmente com sua pós-graduação que abraçava as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) – na terminologia da época – tanto em seu conteúdo, como na metodologia.

Dessa forma, a UOC foi uma das pioneiras globais a explorar o conceito de universidade “aberta” para além da distância física, abraçando o digital não como um complemento, mas como o foco de sua identidade pedagógica.

Acadêmicos como Manuel Castells, intrinsecamente ligado à instituição, teorizavam sobre a emergente “sociedade em rede”, e a UOC materializava essa nova era: um espaço de aprendizado flexível, acessível, desterritorializado. A promessa: usar o digital para romper barreiras, democratizar o acesso ao conhecimento e fomentar uma nova cultura de aprendizagem conectada.

Ainda hoje a UOC é referência em temas como sociedade-rede, sociedade do conhecimento…

Quando a tecnologia funciona como barreira

Retornando ao presente: com toda a vivência das interações digitais, inclusive potencializada pela pandemia da covid-19, a expectativa de uma compra online é a de fluidez e facilidade.

No caso de um livro acadêmico, altamente específico, a distinção entre bits e átomos apontada por Nicholas Negroponte é especialmente relevante. Não somente a edição em papel custa mais caro, devido a sua materialidade, como o custo do envio intercontinental seria proibitivo (sem falar em sua pegada ecológica).

E aqui encontramos o anacronismo da editora da UOC, utilizando a plataforma de Digital Rights Management (DRM, gestão de direitos digitais, em inglês) da Adobe. Todos conhecem o nome da empresa, seja por seus aclamados softwares de design ou pelo nossos arquivos PDF do dia-a-dia. Mas alguém já escutou falar do Adobe Digital Editions? Nem eu, até comprar um livro da UOC.

Aparentemente, a Adobe tampouco tem ouvido falar. O programa para computador tem copyright de 2018. Para smartphone, consta que foi atualizado em 2023; porém trata-se da versão 1.1, ou seja, basicamente a mesma de seu lançamento em 2015.

Aquele “look” da década passada.

Em termos de tecnologia digital, isso é muito tempo. Uma obsolescência tecnológica que se se reflete em sua usabilidade, embora o principal problema seja a forma como a editora da UOC entende a propriedade intelectual, contraditória com a noção de “aberto”. Mas como essas decisões tecnológicas e conceituais se refletem na prática acadêmica?

Diante das peripécias que vivi até conseguir abrir o ebook adquirido e perceber o desafio que seria ler e estudá-lo, sintetizei alguns pontos:

A editora, em sua tentativa de proteger rigorosamente os direitos autorais, cria uma contradição. O que supostamente “economiza” ao dificultar a pirataria, arrisca-se a perder em vendas diretas, afastando leitores que valorizam uma experiência de usuário integrada e funcional.

DRM: proteção ou obstáculo?

Uma primeira observação: a tecnologia DRM não é inerentemente perversa. Embora tenha falhado em muitos contextos, a plataformas Kindle da Amazon é um exemplo de uso mais transparente e amigável. Além dos recursos inexistentes no leitor da Adobe, permite o empréstimo de obras, além de possibilitar a impressão e cópia do conteúdo digital – até um certo limite.

E agora uma pergunta: qual o real benefício dessa abordagem tão restritiva para obras acadêmicas de circulação limitada, quando o prejuízo para o leitor/estudante é tão evidente?

No Brasil, por exemplo, a plataforma SciELO Livros é um marco na disponibilização de literatura acadêmica em acesso aberto, compreendendo a importância da circulação social do conhecimento.

Mesmo editoras universitárias com recursos mais limitados, como a Editora da Universidade Federal de Pernambuco, apesar de utilizar o PDF estático em detrimento do versátil formato ePub, tem privilegiado o acesso aberto. Entende, assim, não somente seu papel público, mas também a visibilidade e o impacto das obras publicadas.

Por isso, no caso da UOC, sua “abertura” não deveria ser apenas um conceito de marketing ou um modelo pedagógico dissociado da forma como o conhecimento pé disseminado e acessado na atualidade.

Enfim, como uma universidade fundada sobre os ideais de abertura e inovação digital pode ser tão retrógrada, indo na contramão de movimentos como a ciência aberta e do acesso livre?

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