Marcelo Sabbatini

A traição epistemológica e a revisão bibliográfica

traição epistemológicaCometem-se muito mais traições por fraqueza do que em consequência de um forte desejo de trair

La Rochefoucauld

A elaboração de qualquer trabalho acadêmico de conclusão de curso, seja uma monografia, dissertação ou tese é como um casamento, como já vimos por aqui. Contudo, ao estabelecermos esta metáfora, automaticamente, criamos as condições para sua extensão. Isto é, se um trabalho acadêmico tem lá suas analogias com um relacionamento afetivo de longo termo, que outras aventuras e desventuras do amor podem também ser comparadas?

Encontramos uma resposta na mais cantada delas, se tomarmos como referência as duplas de música sertaneja: a traição, a “gaia”, colocar os cornos, entre um sem fim de nomes criativos e pitorescos para um comportamento que traz decepção e tristeza para quem sofre.

Mas aqui é seu trabalho que irá sofrer (assim como sua avaliação), caso você ceda ao impulso da chamada “traição epistemológica” durante una revisão bibliográfica. Ou melhor dizendo, e agora recuperando a epígrafe de nosso moralista do século XVII, este tipo de infidelidade é muito mais o fruto da falta de experiência e de preparação metodológica que uma intencionalidade propriamente dita.

Mas afinal, o que é a traição epistemológica? Como evitá-la?

Basicamente, a traição epistemológica ocorre quando ao redigir uma revisão bibliográfica você não é fiel à  teoria que está sendo estudada, analisada e debatida com o objetivo de contextualizar o seu tema e problema de pesquisa.

Uma das formas através da qual da traição ocorre deve-se ao fato dos textos lidos possuírem, eles mesmos, sua porção de revisão bibliográfica. E logo, um erro de iniciante é citar esta fonte atribuindo a seu autor a responsabilidade por ideias que ele está descrevendo ou resumindo, mas que não são as suas. Por isso, sempre devemos citar um autor naquilo que ele realmente contribuiu, de forma original e única, para uma certa discussão.

Essa traição é ainda mais grave quando você atribui ideias a um autor que são justamente o oposto daquilo que ele defende. Relembrando, para que este autor chegue a uma determinada proposição ou conceito, primeiramente ele precisa estabelecer a base, a fundamentação teórica do campo que logo estará sendo questionado. Citá-lo neste momento, no qual ele está apenas “recontando” aquilo com o qual ele não concorda e posteriormente rebaterá, é uma espécie de infidelidade.

Um exemplo fictício, a partir de um texto real (veja a discussão sobre o neotecnicismo na educação aqui):

De acordo com Mira e Romawoski (2009, p. 6), o objetivo da educação é formar um indivíduo que, no mundo do trabalho “deve ser polivalente, multifuncional (com capacidade para exercer várias funções diferentes), flexível (com capacidade de adaptar-se à s mudanças do mundo do trabalho a fim de garantir sua empregabilidade).

Trata-se de uma citação que incorre nisto que chamamos de traição epistemológica. No caso, as autoras estão estabelecendo o pano de fundo para colocarem sua proposta, que é antagônica à s ideias resumidas neste trecho, ou seja, a de que a educação deva ser subordinada ao mundo do trabalho. Vejamos como eles concluem seu trabalho:

Pensar uma avaliação que inclua ao invés de excluir, pensar um currículo voltado para a formação humana, configura-se como uma tarefa bastante complexa, que implica no reconhecimento de seu papel nas relações de poder presentes na sociedade. Mas implica, também, em buscar as possibilidades de realização de um projeto educacional ”“ articulado com as demais lutas sociais ”“ elaborado a partir de bases conceituais consistentes, que assegurem avanços qualitativos reais para a ação educacional (MIRA & ROMANOWISKI, 2009, p. 11).

Como se pode notar, a primeira citação é paradoxal em relação a segunda, apresentando um ponto de vista que não é o do autor. Gaia!

Para não incorrer nesta infidelidade, a solução é a mesma de um relacionamento amoroso: comprometimento e dedicação. Evite o comodismo de citar sua fonte, somente por que ela está resumindo muito bem o estado da arte de uma questão. É preciso conhecê-la a fundo, realizar uma leitura cuidadosa e identificar qual a contribuição e o posicionamento específicos do autor, antes de incorporá-la a sua própria revisão.

Nota: autores experientes são menos suscetíveis a este tipo de interpretação errônea, por dois motivos. Primeiramente, ao colocar uma determinada afirmação eles imediatamente referenciam a fonte, atribuindo a ideia original a quem quer que seja e se distanciando desta opinião. Logo, de forma sutil eles já interpretam a informação, colocando-se. Vejamos o exemplo, no mesmo texto:

Nesse sentido, pode-se dizer que o elemento central da pedagogia tecnicista era a organização racional dos meios, sendo que o planejamento era o centro do processo pedagógico, elaborado pelos especialistas. [”¦] O problema da educação era, fundamentalmente, um problema de método: a suposta neutralidade científica implica em não se questionar as relações entre educação e sociedade; não há espaço para a contradição (MIRA & ROMANOWISKI, 2009, p. 3).

Perceba que a primeira frase é neutra, resumindo a característica da tendência tecnicista na educação. Porém, na segunda frase as autoras assumem uma posição: o uso do termo “suposta” contradiz a concepção de neutralidade científica e no final elas propõem uma concepção alternativa de educação.

Das pequenas traições

Assim como nas relações afetivas, existem traições e traições. Mesmo sem consumar o adultério, um caso propriamente dito, os flertes, virtuais ou “tradicionais”, a falta de solidariedade e de lealdade, enfim, também são quebras de contrato, que geram conflitos e decepções

O mesmo acontece com a escrita acadêmica; além da escandalosa infidelidade epistemológica descrita acima, outras nuances da revisão bibliográfica podem levar a um afastamento do texto acadêmico em relação à  objetividade.

Particularmente o artigo de Alda Judith Alves titulado “A ‘revisão da bibliografia’ em teses e dissertações: meus tipos inesquecíveis” publicado no Caderno de Pesquisa de São Paulo, n. 81, maio de 1992, nos traz dois casos que identifico como infidelidade. Como contextualização, esta professora e pesquisadora utiliza a caricatura para mostrar o que deve ser evitado ao realizar uma revisão da literatura.

Pois bem, uma primeira forma de traição seria aquilo que ela denomina a revisão “colonizado versus xenófobo”. Em suas palavras:

Optamos aqui por apresentar esses dois tipos em conjunto, pois um é exatamente o reverso do outro, ambos igualmente inadequados. O colonizado é aquele que se baseia exclusivamente em autores estrangeiros, ignorando a produção científica nacional sobre o tema. O xenófobo, ao contrário, não admite citar literatura estrangeira, mesmo quando a produção nacional sobre o tema é insuficiente.

Tanto num caso como no outro, você como pesquisador estará assumindo uma visão parcial de uma determinada área do conhecimento, traindo portanto seu objetivo de contextualizar seu problema de pesquisa, de forma ampla e coerente.

Logicamente, entende-se que, ao não ser uma atividade puramente objetiva e isenta de valores, qualquer pesquisa assume uma postura ideológica. Porém, nem o servilismo cego à  ciência produzida na Metrópole, nem o grito radical por uma ciência autóctone, decolonial, são posições leais à  postura crítica e parcimoniosa que um pesquisador deva ter.

Logo, a outra perfídia epistemológica muito presente como “tipo inesquecível” é o chamado “apêndice inútil”. Novamente citando diretamente o texto de Alda Alves:

Este é o tipo em que o pesquisador, após apresentar sua revisão de literatura, organizada em um ou mais capítulos à  parte, aparentemente exaurido pelo esforço, recusa-se a voltar ao assunto. Nenhuma das pesquisas, conceituações ou relações teóricas analisadas é utilizada na interpretação de dados ou em qualquer outra parte do estudo. O fenômeno pode ocorrer com a revisão como um todo ou se restringir a apenas um de seus capítulos. Neste último caso, o mais frequentemente acometido desse mal é o que se refere ao contexto histórico.

Neste caso, podemos entender a analogia não somente no sentido de uma autotraição, mas também uma traição ao leitor. Assim, se você elaborar uma revisão bibliográfica que logo não tem repercussão sobre o trabalho, você estará criando uma decepção ao redor de sua própria pesquisa: aquelas ideias e conceitos que deveria iluminar seu percurso metodológico, desde a definição do problema até os procedimentos de coleta e análise dos estão sendo abandonadas. Com isso, sua pesquisa possivelmente está sendo guiada por um “achismo” ou, na melhor das hipóteses, terá pouca densidade e relevância.

Lidar com ideias complexas, em forma textual, obedecendo a um grande número de regras arbitrárias. A escrita acadêmica não é fácil, definitivamente. Mas ainda assim é preferível superar nossas “fraquezas” metodológicas do que ser acusado de traição. Ou não?

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