Marcelo Sabbatini

WhatsApp: a ferramenta que conquistou o mundo e sequestrou nosso tempo

Mulher jovem com um celular posicionado diante de sua boca, segurando-o com as mãoes. Ela tem os oholos levemente arregalados, como se demonstrando surpresa. Na tela há um fundo verde, com o logotipo do Whatsapp. Iluminação dramática, lateral.

Foto de Rachit Tank

Tecnologias são somente tecnologias e seu uso para o bem o para o mal depende de quem a utiliza, certo? Então, o que dizer do impacto social de uma plataforma de comunicação como o WhatsApp? A realidade a qual nos submetemos a este mecanismo de comunicação– e aparentemente, os brasileiros mais que outros povos – merece uma análise mais detalhada.

A partir do ponto de vista da Filosofia da Tecnologia, questionamos a tese da “tecnologia neutra”: ela ser positiva ou negativa depende do contexto e de seu uso. Por outro lado, numa visão crítica, toda tecnologia inerentemente carregada de significados políticos, éticos e econômicos; nesse sentido, os valores que o WhastApp traz embutidos dizem muito a respeito deste aplicativo e de nossa sociedade tecnologicamente imersa.

Fundamentação: o fator comunicação

Base da interação humana desde os primórdios da civilização, a comunicação tem modificado e sido modificada pelo desenvolvimento de tecnologias que ampliam nossa capacidade de intercambiar mensagens: dos tambores e sinais de fumaça à imprensa, telefonia, internet…Cada passo neste caminho não apenas ampliou nossa capacidade de comunicação, mas transformou a forma como nos relacionamos.

Dito isso, o WhatsApp é o último passo da evolução das tecnologias de mensagem instantânea, caracterizadas por uma comunicação, instantânea global, independentemente de fronteiras, distâncias ou do tempo. Entretanto, ao estar indissoluvelmente ligado ao telefone celular do usuário, o “zap” demoliu as barreiras de acesso. Com mais de 2 bilhões de usuários, tornou-se onipresente na vida contemporânea. Sem exageros, poderíamos dizer que o aplicativo dominou nossas e vidas, um poder que está relacionado a seus valores intrínsecos.

Motivação: domesticar o “Terceiro Entorno”

Quando o “virtual” começou a despontar em meio à década de 1990, o filósofo espanhol Javier Echeverría sistematizou a noção de “três entornos” para compreender os ambientes em que os humanos coexistem: o natural (físico), o urbano (cidades, instituições) e o digital (redes, plataformas). O WhatsApp estaria no epicentro deste terceiro entorno – um espaço que, diferentemente dos anteriores, não foi desenvolvido durante milênios de evolução cultural, mas surgiu de forma muito rápida, demandando adaptações improvisadas e todavia incertas. Na proposta de Echeverría, precisamos “domesticar” este espaço digital, em vez de sermos domesticados por ele.

O WhatsApp nasceu como uma evolução do SMS, oferecendo mensagens ilimitadas via internet, mas agora atrelada a um smarthphone e não a um registro particular em algum serviço de comunicação. Ao possibilitar o envio de áudio, fotos e vídeo captados diretamente do celular e chamadas em grupos, transformou-se numa plataforma de comunicação total. Estes valores embutidos – simplicidade e acessibilidade – permanecem como seus maiores atrativos e, paradoxalmente, seu maior perigo.

Por um lado, a simplicidade conceitual esconde a magnitude da forma como interagimos com um nada inocente “aplicativo de mensagens”. O ambiente social, visto de forma mais ampla, e as crenças, valores e hábitos que conformam nossa cultura afetam e são afetados por este tipo de comunicação, sem que tenhamos desenvolvido ainda práticas adequadas para habitá-lo, para domesticá-lo. Mas antes, quais são estes valores e como nos afetam?

Generalização: mais além do idiossincrático

Para uma análise filosófica, precisamos como primeiro passo evitar as particularidades individuais de uso (“minha tia que compartilha fake news” ou “aquele grupo irritante do trabalho”). Estamos em busca de questões estruturais, que se revelam no design da interação com o aplicativo e que afetam sistematicamente como nos comunicamos, independentemente de nossas preferências e idiossincrasias.

Portanto, uma análise dos valores embutidos na tecnologia deve ir além do anedótico para examinar como seu uso operacionalizado pelo código computacional é capaz de moldar nossos comportamentos social e cognitivo, inclusive de forma frequentemente imperceptível.

1) Onipresença e ubiquidade

Assim como o celular se tornou indispensável, o WhatsApp possui um alcance que elimina a possibilidade de não estar “online”. Suas notificações nos chegema em qualquer lugar, a qualquer momento, criando uma expectativa implícita de disponibilidade constante.

Este “prazer da ubiquidade”, recuperando o título de um capítulo do livro “O Ócio Criativo”, de Domenico de Masi, não é acidental; é arquitetado e constitui o valor central do aplicativo. Seu objetivo é maximizar o “tempo de tela” e a frequência de interações, transformando a comunicação humana – tradicionalmente contextual e situada – num fluxo contínuo sem início ou fim definidos.

A consequência é uma fragmentação da atenção e uma erosão dos limites temporais. Reuniões são interrompidas por notificações, momentos íntimos são invadidos por cobranças profissionais e o tempo de descanso mental, essencial para a criatividade e reflexão, é constantemente comprometido.

2) Imediatismo

“Online”, “digitando…”, “visto por último às”. As camadas de meta-informação utilizadas pelo WhatsApp aprofundam o fator ubiquidade, elevando nossas expectativas temporais. A visualização de mensagens tornou-se sinônimo de obrigação de resposta imediata.

O sinal das marcas azuis de “visto” e outros recursos contribuem para a criação de hábitos culturais. Particularmente, os grupos exigem constante atenção, sob o risco do FOMO (fear of missing out, medo de ficar “por fora”, em tradução livre) e de se perder algo importante numa extensa linha de mensagens.

Comparativamente a outras tecnologias de comunicação assíncrona, como cartas ou o próprio correio eletrônico, que permitiam tempo para reflexão e respostas mais pensadas, o uso do WhatsApp se aproxima ao de uma conversação síncrona, em tempo real. Resultado: uma comunicação mais reativa que reflexiva, mais veloz que profunda.

Grupos com grande atividade podem gerar centenas de mensagens diárias, criando uma presunção implícita de que devem ser acompanhados em tempo real. O resultado é uma condição de deficit de atenção induzido. Já o foco sustentado, essencial para trabalho intelectual significativo, é prejudicado.

Em conjunto, o imediatismo e a condição de alerta constante significam que cada notificação representa uma demanda potencial de atenção. Esta sobrecarga informacional crônica tem consequências psicológicas documentadas, incluindo dificuldade de concentração, ansiedade e fragmentação cognitiva.

3) Ausência de estrutura informacional

Mensagens organizadas cronologicamente, em fluxo contínuo e linear. Embora possa ser associada ao valor de “simplicidade”, na prática a linha do tempo do Whatsapp exige atenção constante e a leitura de todo texto que passe através dela. Embora possa funcionar para conversas casuais, esta estrutura de informação é problemática para a coordenação de trabalho, compartilhamento de conhecimento ou tomada de decisões.

Informações importantes frequentemente são “enterradas” em longas conversas, sem mecanismos eficientes de recuperação (com exceção de uma busca textual simples). Decisões importantes misturam-se com conversas triviais, desviando o foco e da atenção.

Tal ausência de estrutura não é neutra, ela privilegia o recente sobre o importante, o emocional sobre o substantivo, dificultando a construção de conhecimento cumulativo.

Uma plataforma que trata da mesma forma um documento crítico e um meme humorístico inevitavelmente distorce nossa percepção de prioridades.

4) Indiferenciação de papéis comunicacionais

O design do WhatsApp trata todas as conexões de forma praticamente idêntica: um contato é um contato, seja seu cônjuge, seu chefe ou um entregador de comida. Esta indiferenciação ignora as distintas naturezas dos vínculos humanos e os protocolos sociais associados a diferentes tipos de relação. Se o ICQ, MSN e outros eram utilizados sobretudo para conversas familiares e de amizade, o Whatsapp misturou tudo.

A falta de granularidade nas configurações de disponibilidade e a escassez de ferramentas para gerenciar diferentes grupos e círculos sociais resultam na homogeneização artificial de nossas relações, com consequências que vão do prático ao psicológico.

5) Privacidade, que privacidade?

Um paradoxo assombra o Whatsapp: ao mesmo tempo que promete “criptografia de ponta a ponta”, tornando as mensagens impenetráveis para observadores externos, a privacidade no aplicativo é corroída pelas funcionalidades de meta-informação já comentadas, entre elas a confirmação de leitura e status “online”.

Ações anteriormente privadas (ler uma mensagem, estar disponível) tornam-se públicas, aumentando a pressão de grupo e reduzindo o controle individual sobre visibilidade social.

Dito de outra forma, a privacidade, no contexto digital, não se limita à segurança contra vigilância externa, mas inclui a possibilidade de controlar nossa atenção, disponibilidade e ritmo de interação. Estes aspectos são sistematicamente comprometidos pelo design do “zap-zap”.

A partir destas características, que repetindo, estão embutidas como valores da ferramenta, podemos pensar em suas repercussões e impactos.

Atenção: vigilância tecnológica

Se é digital, está sendo gravado. Com o registro permanente de nossas interações, a mais efêmera das conversas se torna um documento persistente. Uma característica, aparentemente conveniente, altera a natureza da comunicação humana, tradicionalmente transitória e contextual.

Novamente, são opções projetadas e que refletem valores, segundo uma arquitetura que é visível, mas não facilmente percebida. Apesar de alguns avanços, como a visualização única de fotos, não há opção padrão para impedir o registro de determinadas interações.

O aplicativo se torna simultaneamente meio de comunicação e sistema de vigilância: cada interação pode potencialmente ser revisitada, reinterpretada ou utilizada em contextos completamente distintos do original. Esta memória digital contrasta com a seletividade natural da memória humana, que normalmente preserva o significado enquanto descarta detalhes menos importantes.

Mais preocupante ainda é o fato de que, apesar de nossas mensagens serem criptografadas, metadados significativos sobre padrões de comunicação permanecem acessíveis à empresa proprietária, contribuindo para as preocupações com vigilância.

Fusão: casa, trabalho…

Uma das transformações mais profundas promovidas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação é a erosão sistemática das fronteiras entre diferentes esferas da vida. Contextos anteriormente separados – profissional, familiar, social, comunitário – agora coexistem, um desafio para as relações de teletrabalho, teleducação, teleconsumo, etc, como já analisava Domenico de Masi no início do século. Contudo, o caráter móvel, pessoal do celular acrescenta uma camada ainda maior de integração de mensagens competindo por atenção.

A fusão de contextos elimina os “rituais de transição” que tradicionalmente delimitavam diferentes papéis sociais e estados mentais. Como consequência, questões profissionais invadem momentos familiares e vice-versa, sem os filtros naturais que espaços físicos distintos proporcionavam.

Estresse, conflito de papéis, perda de significado das diferentes dimensões da vida humana…posso ser um tanto apocalíptico neste ponto, mas quem foi capaz de abandonar o aplicativo por algum período relata ter obtido serenidade e paz pessoal.

Determinação: a perda de autonomia

A capacidade de definir os termos de nossa própria existência e de interação social impacta nossa autonomia. A plataforma, ao normalizar a disponibilidade permanente e resposta imediata, reduz sistematicamente nossa agência sobre nosso tempo, atenção e energia mental.

Esta erosão de autonomia não se manifesta como coerção explícita, mas como pressão social implícita, amplificada pelo design da ferramenta. Desativar notificações ou responder com atraso torna-se um ato frequentemente interpretado como descortesia ou negligência.

A consequência é uma forma sutil de heteronomia tecnológica – uma condição onde nossos ritmos de vida e trabalho são cada vez mais determinados, não por nossas necessidades intrínsecas ou valores pessoais, mas pelas expectativas associadas ao uso.

Ação: como usar e se adaptar?

Diante deste cenário, como podemos recuperar alguma nossa agência humana, sem abrir mão dos benefícios (e mesmo da obrigatoriedade) da comunicação digital? Seguem algumas orientações:

  1. Desenvolver consciência sociotécnica, reconhecendo que não somos apenas “usuários” passivos, mas habitantes de um ambiente que é moldado ativamente por nosso comportamento e decisões. Práticas de resistência, como por exemplo a elaboração de um grupo paralelo ou “antigrupo” que reúna todas as pessoas com exceção daquela que não pode ver as mensagens (o professor, um membro da família não muito querido) é uma forma de burlar os valores impostos.
  2. Estabelecer protocolos de uso, com a negociação em círculos pessoais e profissionais sobre as expectativas de disponibilidade, tempos de resposta e momentos de desconexão. Grupos de trabalho e estudo, por exemplo, podem adotar o “horário comercial” e, sobretudo, evitar o envio de mensagens durante o final de semana.
  3. Criar zonas livres de notificação, com a designação de períodos e espaços nos quais o aplicativo permanece desligado ou silenciado, protegendo tempos de concentração profunda e conexão interpessoal não mediada tecnologicamente. Aqui o exemplo paradigmático é a sala de aula: ninguém usa, nem o professor.
  4. Utilizar ferramentas complementares, especialmente em contextos profissionais ou organizacionais, com a consideração de plataformas dotadas de estruturas informacionais mais adequadas a trabalho colaborativo. No contexto educacional, o uso de ambientes virtuais de aprendizagem (AVAs) conta com formas mais sofisticadas de interação, apesar de estes perderem no quesito praticidade e acessibilidade.
  5. Efetuar a desconexão periódica, com o cultivo regular de períodos de desligamento digital como prática de autocuidado cognitivo e emocional. Os próprios dispositivos celulares contam, na atualidade, com aplicativos para gerenciar o uso de tela, numa concepção de “bem-estar digital”.
  6. Advogar por design ético, como consumidores, pressionar por uma interface que respeite a autonomia humana, bem-estar cognitivo e diversidade contextual. Pode ser efetivado através de resenhas, comentários ou mesmo ações coletivas direcionadas a que a plataforma reconheça as necessidades e preocupações de seus usuários. Em última instância, o uso de aplicativos alternativos que contem com valores menos intrusivos – Telegram, Signal – é uma saída radical.

Através dessa análise, esperamos ter evidenciado que o WhatsApp não é simplesmente uma ferramenta, cuja uso positivo ou negativo dependa de seu uso. Pelo contrário, identificamos uma série de valores, dentre os quais se destaca o imediatismo. Não se trata, portanto de uma “tecnologia neutra”.

O reconhecimento de seus valores embutidos, por outro lado, evidenciam que este entorno precisa ser continuamente adaptado e negociado para se manter a humanidade de seu uso. Isto também depende de nosso engajamento consciente e deliberado, enquanto usuários, o que exige uma visão crítica e bem informada do caráter sociotécnico do “monstro verde”.

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