Marcelo Sabbatini

Autobiografia intelectual: parte 1

A primeira parte destas auto-reflexões sobre meu caminho acadêmico foi escrita para minha qualificação no Mestrado em Comunicação Social, que eu então cursava em 1998, na Universidade Metodista de São Paulo. Um bom exemplo de como um memorial serve como ferramenta de auto-conhecimento e metacognição.

A Professora Sandra Reimão, doutora em Semiótica e Comunicação e investigadora da cultura midiática brasileira, parecia absolutamente não compreender o que lhe diziam naquela manhã ensolarada de março. Uma situação incomum para ela. Disse em tom estupefato, tentando organizar as idéias que lhe deixavam atônita:>

"Mas então, você é formado em Engenharia, está fazendo Mestrado em Comunicação e investigando a área de Saúde?"

Resumindo assim, realmente parece estranho, pensei para mim mesmo, mas para compreender esse imbroglio, eu precisaria contar toda minha história intelectual.

Uma trajetória que começa antes mesmo de eu nascer, porque o que cada pessoa é não depende somente dela, mas de toda uma conjuntura social e familiar. Não pretendo remontar a um passado distante na Roma antiga, nem aos navios de barulhentos imigrantes italianos do início do século, mas algumas palavras sobre minha família tornam-se necessárias.

Nasci em Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, no dia 04 de novembro de 1974, não por acaso. Minha mãe, Rejane, professora do secundário, formada em Biologia pela Universidade de São Paulo, planejou a data, para que a licença-maternidade emendasse com as férias escolares e poder ficar mais tempo com o filhote. Meu pai, Renato, era professor-auxiliar na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Fui criado, portanto, em um lar onde a educação e o conhecimento estavam sempre presentes. Já bebê, praticava o alpinismo em montanhas de livros, espalhados no escritório bagunçado de meu pai. Meu irmão também teve uma trajetória parecida e hoje ele é engenheiro eletrônico formado pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e trabalha em uma empresa multinacional de telecomunicações.

Em 1977, já como o diploma de Doutor na mão, meu pai foi fazer seu pós-doutoramento no Instituto Max Planck, em Munique, na antiga Alemanha Ocidental. Durante este período, tomei contato com um dos dispositivos que mais profundamente transformou o mundo no último século, o microcomputador. Desde os três anos de idade, já passava algumas horas em frente a um micro, divertindo-me com jogos educativos. Não é por nada, que hoje trabalho naturalmente com computadores.

Os anos da infância passaram tranqà¼ilos. Lembro de certa ocasião, em um shopping center em São Paulo, quando meu irmão e eu ficamos fascinados por um livro de ficção científica ilustrado. O livro era em inglês e por isso meus pais não o compraram para nós. Aquela limitação de meu conhecimento negando o meu prazer ficou marcada. Na pré-adolescência comecei a estudar inglês, e embora à s vezes eu não suportasse o tédio das aulas, hoje reconheço que foi um dos investimentos mais produtivos que já fiz, sendo este idioma quase uma segunda língua.

Na escola, eu tinha múltiplos interesses, saindo-me bem praticamente em qualquer matéria e não tendo uma preferida. Na época de escolher um curso universitário e definir minha profissão esta característica foi um problema crucial. Tantos interesses não cabiam em somente uma profissão e os cursos pareciam limitadores. Tive uma queda pelo jornalismo, afinal eu gostava de manter-me bem informado e gostava de fazer os trabalhos escolares com requintada produção gráfica. Aos 12 anos de idade, eu já editorava eletronicamente teses e fazia apresentações de slides para médicos conhecidos e engordava minha poupancinha. Depois, os pacotes da Microsoft para o Windows aumentaram o poder da editoração eletrônica, com uma grande acessibilidade ao usuário mediano e acabando com meu pé-de-meia. Fui uma vítima do desemprego tecnológico.

Porém, meu pai, que agora dirigia um núcleo de pesquisa na (UNICAMP) e atuava como colaborador do jornal Correio Popular, publicando semanalmente uma coluna sobre Ciência e Tecnologia, acabou por me convencer que era melhor ser um jornalista especializado, ainda mais um jornalista especializado em ciência, pois eu gostava de ambas as coisas, e que para isso era melhor eu ser cientista e não jornalista, e que por isso devia deixar essa idéia maluca de fazer jornalismo, e por que não biologia, você sempre gostou de biologia, blá, blá…No que minha mãe concordava, com as mãos em torno do meu pescoço e exclamando: "MEDICINA!!! ENGENHARIA!!!!".

Acabei escolhendo a Engenharia Química pois ela parecia embarcar o maior número de disciplinas possíveis, tratando de fenômenos físicos, químicos e biológicos, descritos através da Matemática e exigindo ao profissional atuante conhecimentos de Economia e Humanidades. No início de 1993, ingressei na Universidade Estadual de Campinas, no curso que escolhi.

É praticamente impossível estar cercado de alunos entusiasmados, ler quilos de livros, ouvir doutores da área durante horas e não pensar em aderir completamente ao ramo de estudo em questão. Durante meus anos de graduação, a idéia do jornalismo científico acabou esquecida em algum canto empoeirado da minha mente. A faculdade acabou tomando todo meu tempo e este tipo de atividade, que eu já poderia ter começado a desenvolver, ficou relegado.

O período não foi tranqà¼ilo, porém, de um ponto de vista intelectual. Aflito com dois anos de disciplinas básicas, sem entender o que realmente a profissão a qual estava dedicando minha vida, procurei estágios e iniciações científicas. Consegui trabalhar com a Professora Doutora Maria Helena de Andrade Santana no "Desenvolvimento de Sistema de Liberação de Vacina Anti-àcaros Utilizando Lipossomas Sintéticos", um projeto de biotecnologia que envolvia a participação do Departamento de Imunologia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Ali estava a multidisciplinaridade! Infelizmente, a falta de recursos financeiros acabou levando ao cancelamento do projeto e eu tive a primeiro contato com a falta de atenção com que os governos brasileiros tratam a questão da ciência e tecnologia.

O estágio em empresas privadas mostrou-se muito, muito mais difícil. Primeiro, por que as oportunidades só se mostraram quando eu cursava o final do terceiro ano. Segundo, por que com o excesso de candidatos e seguindo uma política de gestão de recursos humanos cada vez mais inflexível e ditada por modismos a obtenção de uma vaga de estágio tornou-se uma quimera, somente alcançada depois de uma maratona de processos seletivos.

Alcancei o objetivo em janeiro de 1996, sendo contratado como estagiário da empresa Akzo Nobel Química Ltda., atuando no departamento de projetos. Como estagiário acompanhei o gerenciamento e controle financeiro de projetos, desenvolvi programas de simulação e cálculo, levantei rotinas operacionais de processo e acompanhei testes laboratoriais. A experiência foi desestimulante, porém. A empresa passava por uma acirrada luta política e o ambiente de trabalho era bastante prejudicado. Além disso, os modismos administrativos também predominavam e não havia  reconhecimento para a competência.

Durante este estágio, eu também passava por uma crise pessoal e o desapontamento com a profissão crescia. A combinação destes fatores começou a desenhar uma virada em minha trajetória. Em setembro, fui chamado por meu pai para trabalhar no e*pub – Grupo de Publicações Eletrônicas em Medicina e Biologia do Núcleo de Informática Biomédica (NIB) da UNICAMP, do qual ele era diretor. Lentamente, comecei a me dedicar ao aprendizado das técnicas envolvidas na publicação eletrônica, ao mesmo tempo em que lutava para recuperar o tempo que havia perdido na faculdade, devido a uma reprovação em uma disciplina chave do currículo. Em outubro, publiquei minha primeira home-page, que felizmente ou infelizmente perdeu-se no limbo dos arquivos eletrônicos descartados.

O ponto real de virada ocorreu em maio de 1997, quando finalmente surgiu uma posição dentro do e*pub, como editor associado da versão on-line da Revista da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (http://www.socesp.org.br/revista/index.htm). Até então, só fizera protótipos de outras revistas científicas, que não chegaram a ser produzidas de forma contínua. Conjuntamente com a revista me tornei webmaster (o profissional que gerencia um site da Internet) do site da Sociedade (http://www.socesp.org.br, que também foi desenvolvido por mim. A ocupação, no entanto, trazia uma certa preocupação. Enquanto um leigo em Cardiologia, não poderia fazer o site destacar-se apenas ao adicionar conteúdo novo. A renovação do conteúdo baseava-se principalmente em cada revista nova. Portanto, para obter algum destaque e manter a posição, era preciso que eu me esmerasse na técnica. Assim, durante o resto do ano até a presente data, dediquei-me a aprender novas tecnologias, observar tendências de uso e adequar a publicação da SOCESP aos manuais de estilo propostos para a publicação eletrônica. Neste sentido, ajudei a criar em torno do site da SOCESP uma comunidade virtual, com a existência de um fórum de debates eletrônico, boletim de notícias, jornal interativo, etc. Além desse trabalho, eu realizava os meus próprios projetos em publicação na WWW, cada um trazendo uma experiência nova.

Em outubro de 1997, minha formatura se aproximava e chegava o momento de decidir o futuro. Descartei finalmente a possibilidade de trabalhar como engenheiro e não me envolvi na centena de processos seletivos em que meus colegas eram massacrados. Consultei meus pais e eles me apoiaram na decisão de seguir uma carreira acadêmica, dentro da área multidisciplinar em que eu estava inserido e interessado. A idéia do jornalismo científico renasceu.

O programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP permitiu minha inscrição, mesmo não sendo formado, além de apresentar uma área de concentração plenamente compatível com meus interesses, a de Comunicação Científica e Tecnológica. Ainda mais, a mestranda Mônica Macedo realizava sua tese em associação com o NIB e representava uma excelente referência.

Elaborei meu projeto de pesquisa, que envolvia a análise e implementação de uma agência de notícias personalizadas utilizando tecnologia "push" na área de saúde, prestei as provas e passei. O professor Wilson da Costa Bueno aceitou entusiasmadamente orientar o projeto. E em março, com o começo das aulas, teria que explicar toda esta história em para a Professora Sandra e muitos outros professores e colegas.

Passado o choque inicial, a professora Sandra continuou a aula, apresentando as leituras exigidas e a forma de avaliação a serem adotados na disciplina. Foi minha vez de entrar em choque. "Fichamento? O que é isso? Lauda, que raio de lauda é essa?". Pensei seriamente em uma saída estratégica pela janela de vidro.

Hoje, aquele aptidão comunicativa renasceu com força total, após tantos anos de represamento. Escrevi artigos para as revistas Informática Médica e Intermedic, publicações do grupo e*pub voltadas para o público leigo, atuando também como tradutor. Consegui fazer minha estréia no jornalismo impresso, com a publicação de um artigo de resenha crítica, tendo também participado ativamente nas publicações do programa da pós-graduação. Os projetos pessoais na WWW continuam sendo desenvolvidos. No final deste semestre, fui selecionado para representar a UMESP e fazer uma especialização em "Comunicação, Ciência e Sociedade" na Universidade de Salamanca, Espanha, e aquela velha intenção de atuar na comunicação científica poderá se tornar realidade. As dificuldades iniciais da mudança repentina do estudo de Exatas para o estudo de Humanas foram superadas e cumpri os créditos do Mestrado de forma bastante proveitosa. Começo a mostrar meu nome para a comunidade científica, sendo convidado para apresentar palestras e participando de congressos.

Finalmente, o interesse por publicações eletrônicas tornou-se mais forte e acabei mudando o projeto de pesquisa para este tema, ao mesmo tempo em que assumia a coordenação geral do e*pub. de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas. A intenção é que exista  um intercâmbio absolutamente compatível de atividades e informações entre minha atividade profissional e o projeto de pesquisa acadêmica, sendo ambos beneficiados da mesma forma.

A história chega até aqui. O futuro? Quem pode dizer com certeza? Logicamente, pretendo finalizar o mestrado em publicações e a especialização em comunicação científica. Depois disso, nada tenho definido, mas tenho a consciência de que os meus múltiplos interesses e habilidades e a própria característica de interface dos projetos nos quais estou envolvido não deixaram de colocar oportunidades interessantes, como um doutorado no exterior. Os caminhos estão abertos, resta trilhá-los da melhor forma possível.

Marcelo Sabbatini
Dezembro de 1998

Continua no próximo capítulo…

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